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Silvia Bolognani
Comportamento
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Amnésia e memória emocional: quando o coração ajuda o cérebro a se lembrar

Uma das minhas atividades profissionais é o atendimento de pessoas que sofreram um problema cerebral e depois ficaram com dificuldades cognitivas: raciocínio, atenção, eficiência mental em geral, e principalmente memória. A amnésia é uma das consequências mais comuns depois de um acidente no cérebro.

A amnésia que eu vejo em meus pacientes após um acidente cerebral, na maior parte das vezes, pouco se parece com a síndrome retratada em Hollywood. O cinema em geral mostra casos de pessoas que esqueceram tudo o que já viveram: Onde estou?, Quem sou?. Essa é a amnésia retrógrada - apaga tudo dalí pra trás.

Isso aí até existe, mas a amnésia mais comum é aquela igual a da peixinha Dori, do filme Procurando Nemo: ela é inteligente, sabe quem é, lembra coisas do passado, mas não consegue guardar coisas da história atual; é um problema de memória recente. Essa se chama amnésia anterógrada.

E é isso que acontece com os meus pacientes: desde que tiveram um acidente eles tem um defeito no registro de novas informações. Então, eles se lembram em geral muito bem de tudo que ocorreu antes do acidente (salvo um apagão de logo antes e logo depois da doença em si), mas não conseguem formar novas memórias de forma eficiente. Assim, a vida desde o acidente vira um amontoado de fatos e informações meio isoladas, desorganizadas cronologicamente. E muita coisa nem sequer amontoa. Apaga mesmo e é como se nunca tivesse acontecido.

Os casos de amnésia anterógrada total existem, mas são raros: é como se a pessoa tivesse parado em um certo dia ou ano de sua vida, e não aprende mais informações desde então. Fica parada em uma época, sem registro de que coisas acontecem e de que o tempo passa. Um exemplo romanceado, mas bem bonitinho é a personagem de Drew Barrymore no filme ‘Como se fosse a primeira vez’.

A amnésia anterógrada mais comum, entretanto, não é total. A mais típica é, de novo, muito bem retratada na peixinha Dori que consegue aprender algumas coisas mas não outras. O que ela usa e repete toda hora se fixa de uma forma um pouco melhor, mas o que não usa ou não chama muito a atenção se apaga.

E daí se mostra um fenômeno muito legal, pois apesar de ser frequente também entre as pessoas normais, ele é muito mais acentuado, quase caricato, entre as pessoas amnésicas: é o poder de fixação da memória emocional.

Todo mundo lembra melhor do que interessa, certo? Mas pra essas pessoas não é uma questão de lembrar melhor. Funciona mais como: eu só me lembro do que tem muito valor emocional, ou porque me interessa muito, ou porque me assustou, ou porque eu detestei. Dessa forma, a vida dos amnésicos acaba se orientando por aquilo que é rotineiro e se repete exatamente igual todo dia e fora isso há uma coleção de eventos marcantes. O resto vai e vem no amontoado de eventos desordenados no tempo.

Tudo isso pra contar que acabei de conhecer um homem de 60 anos que sofreu um acidente de carro aos 20. O impacto cerebral foi gravíssimo e ele ficou bem amnésico, assim desse jeitinho mais comum da gente ver: amnésia grande para tudo que veio após o acidente, amontoando lembranças e esquecimentos todos os dias. E isso faz parte da vida dele há 40 anos!

Nesse tempo (dos 20 aos 60 anos) ele teve muita ajuda da família e amigos e realmente conseguiu uma vida plena: terminou a faculdade, trabalhou, namorou, casou, teve 2 filhos, fez amigos, viajou, enterrou pessoas queridas, viu governos entrarem e saírem, viu filmagens e re-filmagens no cinema e nas novelas da Globo, viu o homem pisar na lua, viu o muro de Berlim cair, viu guerras no mundo, tecnologia, internet, revoluções sociais, mudanças de comportamento, o vai e vem das calças boca de sino e dos carros da Volkswagen.

Na consulta de hoje, como eu costumo fazer com meus pacientes, eu risquei uma linha em uma folha, coloquei o ano de seu nascimento em um extremo e o ano atual no outro, e pedi para que ele apontasse os fatos e eventos que mais o marcaram na vida. Não foi muita surpresa o que aconteceu: até a data do acidente ele marcou mortes, entradas e saídas nas escolas, viagens e o próprio desastre de carro. De lá pra frente, ele marcou sua vida em namoradas, paixões não-correspondidas, uniões e separações. Depois de eu insistir um pouco ele conseguiu fazer umas contas e marcou também o ano de nascimento dos filhos.

Nenhuma só palavra sobre trabalho, perrengues diários, desavenças, pequenos triunfos, grandes feitos, doenças, mortes, nada! Só amores e desamores. Foi isso que sua memória parca selecionou como importante pra ser guardado apesar da deficiência.

Fiquei aqui pensando: da vida a gente não leva nada. E mesmo em vida a gente devia carregar só o que realmente importa...








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